Jovem rico erra. “Menor” pobre comete crime
Os repetidos casos de violência gerados por jovens da classe média alta brasileira e a forma aviltante com a qual têm sido tratados adolescentes pobres no processo de ocupação policial de comunidades no Rio de Janeiro me deixam duplamente incomodado. Primeiro, é claro, pelo fato em si. Segundo, pela forma como a sociedade se comporta diante disso.
Sabemos que é mais fácil uma pessoa que roubou um xampu, um litro de leite ou meia dúzia de coxinhas ir amargar uma temporada no xilindró – como mostram diversos casos que já trouxe aqui – do que um empresário que corrompeu ou um político que foi corrompido passarem uma temporada fora de circulação.
Não que o princípio da insignificância (que pode ser aplicado quando o caso não representa riscos à sociedade e não tenha causado lesão ou ofensa grave) não seja conhecido pelo Judiciário. Insignificante mesmo é quem não tem um bom advogado, muito menos sangue azul ou imunidade política.
Tempos atrás, a seguinte notícia veio a público:
“A empregada doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto, de 32 anos, teve a bolsa roubada e foi espancada por cinco jovens moradores de condomínios de classe média da Barra da Tijuca, na madrugada de sábado. Os golpes foram todos direcionados à sua cabeça. Presos por policiais da 16ª DP (Barra), três dos rapazes (…) confessaram o crime e serão levados para a Polinter. Como justificativa para o que fizeram alegaram ter confundido a vítima com uma prostituta.”
Os rapazes não eram da ralé. Se fossem de classe social mais baixa, certamente o texto seria sutilmente diferente:
“A empregada doméstica Sirley Dias de Carvalho Pinto, de 32 anos, teve a bolsa roubada e foi espancada por cinco moradores da favela da Rocinha, na madrugada de sábado. Os golpes foram todos direcionados à sua cabeça. Presos por policiais da 16ª DP (Barra), três dos bandidos (…) confessaram o crime e estão presos. Como justificativa para o que fizeram alegaram ter confundido a vítima com uma prostituta.”
Rico é jovem, pobre é bandido. Um é criança que fez coisa errada, o outro um monstro que deve ser encarcerado. Lembro que o pai de um deles, num momento de desespero, justificou a atitude do filho como sendo perdoável. Da mesma forma, o pai de um dos jovens que agrediram homossexuais com lâmpadas fluorescentes na avenida Paulista, em São Paulo, pediu condescendência. Afinal, isso não condiz com a criação que tiveram. Bem, são pais, é direito deles. O incrível é como a sociedade encara o tema, com uma diferenciação claramente causada pela origem social.
Tenho minhas dúvidas se a notícia sairia se fosse o segundo caso. Provavelmente, na hora em que o estagiário que faz a checagem das delegacias chegasse com a informação, ouviria algo assim na redação: “Pobre batendo em pobre? Ah, acontece todo dia, não é notícia. Além disso, é coisa deles com eles. Então, deixem que resolvam”.
Amigos que trabalharam em uma rádio grande de São Paulo, pertencente a um grupo de comunicação, já ouviram algo muito parecido, mas mais cruel… É triste verificar mais uma vez que o conceito de notícia depende de qual classe social pertencem os protagonistas. Somos lenientes com os nossos semelhantes, com aqueles que poderiam ser nossos primos e irmãos, e duros com os outros.
A justificativa dos espancadores também é bastante esclarecedora. Ou seja, “puta” e “bicha” pode. Assim como índio e “mendigo”. Lembram-se do Galdino, que morreu queimado por jovens da classe média brasiliense enquanto dormia em um ponto de ônibus? Ou a população de rua do Centro de São Paulo, que vira e mexe, é morta a pauladas enquanto descansa? Até onde sabemos, apesar dos incendiários brasilienses terem sido presos, eles possuíam regalias, como sair da cadeia para passear. E na capital paulista, crimes contra populacão de rua tendem a ser punidos com a mesma celeridade que agressões contra indígenas no Mato Grosso do Sul.
Na prática, as pessoas envolvidas nesses casos apenas colocaram em prática o que devem ter ouvido a vida inteira: putas, bichas, índios e mendigos são a corja da sociedade e agem para corromper os nossos valores morais e tornar a vida dos cidadãos de bem um inferno. Seres descartáveis, que vivem na penumbra e nos ameaçam com sua existência, que não se encaixa nos padrões estabelecidos. E por que não incluir nesse caldo as empregadas domésticas, que existem para servir? Se eles soubessem a profissão de Sirley, teria feito diferença?
A sociedade tem uma parcela grande de culpa em atos como esse e os dos jovens que se tornam soldados do tráfico por falta de opções e na busca por dignidade, fugindo da violência do Estado e do nosso desprezo. A culpa não é só deles.
A diferença é que, para os da classe média e alta, passamos a mão na cabeça. Afinal, são “jovens”. Para os pobres, os “menores”, passamos bala.
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