Entrevista do ex-presidente da Fundação Cultural Palmares ilustra bem o quanto é difícil a luta contra o racismo no Brasil.
Ele despertou para a importância da luta contra o racismo ao ouvir uma frase do pai, semianalfabeto: “Preto só é gente se estudar”. Mesmo tendo sido sempre o melhor aluno por onde passou, o baiano Zulu Araújo não conseguiu escapar da discriminação racial. Logo percebeu que para que a situação do negro pudesse mudar, o País teria também que se transformar. Formado em Arquitetura, decidiu fazer do combate ao racismo o seu principal objetivo de vida. Hoje é presidente da Fundação Palmares, entidade governamental que trabalha para incluir o negro de fato na sociedade brasileira. Zulu comemora os avanços das políticas afirmativas, principalmente das polêmicas cotas raciais, que, em sete anos, colocaram mais negros em universidades públicas do que em toda a história do Brasil. Mas sabe que o trabalho é árduo, pois, como diz, “nenhuma elite do mundo, branca ou preta, quer perder privilégios”. Diante da urgência em corrigir distorções históricas, conclui: “A sociedade precisa entender que a inclusão dos negros é boa para todos”.
Qual é a gênese do racismo brasileiro?
Ele é fruto de um processo complexo. A colonização feita pelos portugueses foi distinta da empreendida por espanhóis e anglo-saxões. A colonização portuguesa se deu, entre aspas, “dentro da promiscuidade”. Aqui ocorreu o período de escravidão mais longo do mundo: dos nossos 510 anos, 4/5 foram de escravidão. O mesmo que 385 anos, quase 400 anos. É evidente que há uma sociedade conformada dentro do processo escravizador. O olhar direcionado ao negro sempre o projetou como menor. Primeiro pela cor da pele, de origem africana, e também porque era ele quem trabalhava. A elite portuguesa sempre raciocionou que ser rico e poderoso estava relacionado com o não trabalho, com o ócio, diferentemente do pensamento de outras elites. O racismo foi naturalizado ao extremo. Sempre foi comum o negro ouvir: “Se compreenda, rapaz. Procure o seu lugar”. Nem se davam ao luxo de dizer qual era o nosso lugar. Não era preciso ser dito: era na senzala, na cozinha, como lixeiro, como pedreiro. Esse era o lugar próprio, de subserviência e subalternidade.
Quais são os reflexos dessa cultura?
No Brasil sempre houve uma escala cromática para se livrar de ser negro. Quando fui tirar minha carteira de identidade, aos 12 anos, e disse que era preto, a moça se recusou a registrar a informação: “Pelo amor de Deus, você não é preto, não faça uma coisa dessa com você”. No Brasil há essa escala cromática: o branco, o preto, o pardo, o escurinho, o moreninho, o cor de jambo… Nosso racismo não tem nada a ver com a nossa ascendência. É um racismo fenotípico. Quanto mais próximo da cor escura, mais excluído. Mas branco é branco. Porque ser branco, no Brasil, é se aproximar do sucesso, da civilidade, da beleza. Tanto que a mulher negra bonita deixou de ser negra e se tornou mulata.
É um tipo de racismo muito próprio, então?
Sim. E, ao enfrentar o racismo, é preciso entender a complexidade do racismo brasileiro. Não podemos responsabilizar os brancos de hoje, mas também não podemos esquecer o passado. É preciso de medidas corretivas capazes de tornar as oportunidades iguais. Aí a condição do negro tem de prevalecer. Nenhum outro pobre foi escravizado no Brasil que não o negro. Italianos, alemães, japoneses… Nenhum. A escravidão no Brasil foi um processo extremamente inteligente sob o ponto de vista do colonizador. Para enfraquecer a resistência, começou-se desagregando a estrututa familiar. Ao chegar ao Brasil, o pai ia para a Bahia, a mãe para São Paulo, o filho para o Rio Grande do Sul. Além disso, misturavam-se negros de várias etnias, com estrututas linguísticas totalmente diferentes. Também havia a eliminação do sobrenome, além de uma enorme violência. Diante de tentativas de lutar contra a escravidão, houve processos violentíssimos, como no quilombo de Palmares. Lá, 20 mil negros e alguns brancos foram assassinados em 1685 por lutarem bravamente pela liberdade. Sabe qual é a dimensão desse número de mortos hoje? Um milhão de pessoas. É o mesmo que entrar numa cidade e matar um milhão de pessoas.
Zumbi dos Palmares recebe o mesmo tratamento de heróis nacionais como Tiradentes?
Zumbi está na galeria de heróis nacionais, mas depois de muita luta. Por muito tempo foi tratado como um marginal. Até hoje é celebrado muito mais pelos negros. Defendemos que o dia de Zumbi seja considerado um feriado nacional, coisa que ainda não é, diferentemente de Tiradentes. Uma pessoa que morre por 20 mil pessoas, que fazem de tudo para esconder sua presença na nossa história, e continua com toda essa importância 300 anos depois… Sem dúvida se trata de um herói nacional. Falta torná-lo um herói de todos.
O processo de abolição no Brasil foi diferente do de outros países?
No Brasil deu-se um processo planejado de exclusão. Depois da abolição houve o incentivo de um movimento maçico de imigração de europeus e asiáticos, apoiado por intelectuais como Nina Rodrigues, que dizia que era fundamental embranquecer o País, pois a majoritária presença negra era vista como a responsável pelo apodrecimento da nossa sociedade. Não houve nenhum processo de inclusão do negro após a abolição. Nenhum. Na Bahia, em 1920, havia ádito para negro não ir à escola, porque diziam que os negros promoviam badernas e intranquilidades. Isso ocorreu muito recentemente, há menos de 100 anos. Há dados do IBGE e do IPEA que atestam que as assimetrias entre negros e brancos continuaram com a mesma distância, paralelas, de 1888 a 1988. As primeiras mudanças só ocorreram com a entrada do sistema de cotas universitárias, em 2003.
As cotas estão sendo bem-sucedidas?
Sem dúvida. A presença dos negros nas faculdades brasileiras sempre foi ínfima. Com as cotas raciais e o ProUni, que existem desde 2003, houve a entrada de mais negros no ensino superior do que no período entre 1808 e 2002.
Por que persiste alguma resistência a esse sistema?
Não acho que a população seja contra. Numa pesquisa, 68% das pessoas se declararam favoráveis às cotas. Sabe o que um articulista da Folha de S.Paulo disse, ao comentar a pesquisa? “Ainda temos tempo de mudar essa situação”. Apesar de haver um bombardeio nos últimos cinco anos de todos os grandes órgãos de imprensa contra as cotas, neste ano a pesquisa deu que 66,5% das pessoas continuam favoráveis a elas. Isso não é divulgado. A população não é contra as cotas. Quem é contra é uma classe média e uma classe alta que se consideram herdeiras divinas dos privilégios e da melhor parte da sociedade.
Como está o atual momento de discussão?
O debate sobre a inclusão racial é fundamental. As provas são contundentes nesse aspecto. O que ocorreu no Leste Europeu sobre a questão étnica? Sérvios, montenegrinos, croatas e albaneses se mataram devido a uma questão étnica que não foi resolvida. Em Ruanda, hutus e tutsis também se mataram. Tudo preto e tudo branco. Ou a questão étnica é resolvida do ponto de vista cultural e social, ou ela explode de maneira trágica e cruel. O que vivemos hoje é um processo de discussão, de reflexão e de avanço para superarmos a tragédia de quase 400 anos de escravidão no Brasil.
Desfizeram-se alguns mitos?
Há dados maravilhosos. Primeiro: destruiu-se o mito de que elas iriam reduzir a meritocracia na universidade. As pesquisas comprovam que a maioria absoluta dos alunos cotistas é superior ou igual à média dos outros alunos. A evasão escolar é menor, mesmo vindo de base mais frágil do que a dos não cotistas. Praticamente não houve casos de tensão racial nas faculdades. Nada daquilo que se disse que iria acontecer com a entrada dos negros cotistas aconteceu. Todos os medos caíram, além de haver dados excepcionais. Hoje há aproximadamente 400 mil jovens negros no ensino superior. Ou seja: daqui a quatro anos teremos esse pessoal disputando o mercado de trabalho com igualdade de condições.
Esta é uma forma eficaz de combater o racismo?
Sem dúvida alguma. As cotas promovem a ascensão social, fazem a universidade refletir sobre a questão. E também é muito importante colocar negros em postos de comando da sociedade, fazendo com que esses postos espelhem a nossa composição racial. É preciso ter negros médicos, advogados, engenheiros, desembargadores, professores. Eu sou arquiteto, e na minha profissão 1,8% são negros. Quando estudei em Salvador, há mais de 30 anos, havia dois negros na minha turma. Sabe quantos entraram neste ano? 40%. É uma diferença enorme. É evidente que essa inclusão vai alterar as relações sociais, as relações econômicas e as relações políticas.
Os brasileiros ainda têm dificuldade de encarar e discutir o racismo?
A questão racial no Brasil é um trauma estrutural na sociedade brasileira. O número de negros aumentou de 10 anos pra cá, subiu para 52%, mesmo sem aumento vegetativo da população negra. A partir do momento em que se deram condições das pessoas se assumirem como cidadãs, elas foram se assumindo de forma plena como negras. Mas há um preço alto a ser pago com a discussão do racismo para determinada parcela da sociedade. É bom que o Brasil seja considerado com poucos negros, para que a universidade continue com 90% de eurodescendentes. É bom que não se fale muito de negros, para que a faculdade de Medicina tenha 98% de brancos. De 200 vagas, 198 são de um público que representa uma minoria no Brasil. Há interesses em torno disso. Se há negros no Brasil, é preciso assumir que seus ascentrais foram vítimas do processo de escravidão dos mais longos da história da humanidade. Aí serão necessárias políticas públicas para superar essa questão. Com políticas públicas se inclui. Com a inclusão, se estabelece competitividade, processos democráticos de escolha, distribuição das riquezas da sociedade. E nenhuma elite no mundo, branca ou preta, quer perder privilégios. No caso brasileiro, essa elite se confunde com os brancos: a maioria absoluta é formada por brancos que dominam e se apropriam da coisa pública há 500 anos. Demover esse processo é complicado.
Quais são as suas expectativas para os próximos anos acerca das questões raciais?
Eu vejo com muito otimismo. Estamos construindo um espaço necessário para reduzir a discriminação no Brasil. É claro que 400 anos não se apagam de uma hora para outra. Mas estamos criando condições de disputar de igual para igual o direito de sermos tratados como cidadãos. Evidentemente, teremos muitos embates, mas também sei que temos uma possibilidade muito maior de alcançar o que está na Constituição: que somos todos iguais, independentemente da cor, raça, religião e origem social. Isso é fundamental. Eu não desejo que todos no País se considerem iguais. Somos distintos mesmo. Temos culturas, origens, religiões e pensamentos diferentes. Isso é bom. Não queremos ser melhor ou pior do que qualquer outro grupo brasileiro. Queremos ser respeitados nessa diferença. O futuro dos negros no Brasil é o futuro da sociedade brasileira. É impossível fazer uma sociedade verdadeiramente democrática sem que haja a superação do racismo e sem a inclusão plena do negro na sociedade brasileira. É bom para a sociedade que sejamos incluídos o mais rapidamente possível, para garantir uma sociedade plural, segura, democrática, aberta, diversa. Não será bom só para os negros, mas para todos.
Fonte: Almanaque Brasil - Bruno Hoffmann
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