terça-feira, 16 de julho de 2013

Da Senzala às Favelas: violências de Estado e resistência popular

 Por Sandra Martins
O Encontro Popular sobre Segurança Pública e Direitos Humanos – ENPOP – realizado entre os dias 12 e 14 de julho, possibilitou uma intensa troca entre ativistas de movimentos sociais, organizações de direitos humanos e moradores de regiões impactadas por intervenções militares ou por grandes reformas urbanas. As praças eram diversas, os sotaques também, mas uma agenda transversal trazia históricos comuns de opressão e questionamentos sobre que tipo de modelo de cidade estava sendo gestado.

Após extensas discussões, iniciadas na sexta-feira com intervenções musicais entremeadas de falas contundentes, foi realizada, no último dia, uma plenária onde foram apresentadas duas moções: uma contra o turismo na favela feito por algumas organizações não governamentais e o Estado; e outra contra o fechamento da Rádio Comunitária Prazeres, que abarcava os Morros dos Prazeres e Escondidinho, no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. O encontro produziu uma carta contendo as principais propostas oriundas dos grupos de debates, todos os encaminhamentos dos GDs integrarão um caderno a ser disponibilizado posteriormente. A articulação do ENPOP agendou para o dia 10 de agosto a próxima plenária, em local a ser definido.

Sob o tema Violências de Estado e Resistência Popular no Rio de Janeiro, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, ao fazer críticas ao atual modelo de desenvolvimento citou a redução dos índices de homicídios da população jovem branca comparando os anos de 2002, 2006 e 2010, foram assassinados 18.800, 15.700 e 13.600, respectivamente. Entretanto, a comemoração teve um sabor amargo ao se comparar o contraponto com a população de jovens negros. Em 2002, foram mortos 26mil; em 2006, 29mil; e, em 2010, 33mil. “Este é o modelo de sucesso de segurança que está colocado nas grandes cidades brasileiras. Não quero discutir redução de homicídio, mas quem está morrendo. Porque desfaz o debate da luta de classe e se redescobre um outro: o do genocídio direcionado aqueles que parecem não servir a uma sociedade de mercado.” 

Freixo alertou que não haverá avanços se o debate ficar restrito a desmilitarização da polícia. Deve haver é a desmilitarização da concepção de segurança que está em toda a estrutura do Estado, que vem criminalizando a pobreza. “A esquerda demorou muito para fazer o debate da segurança pública. Não era um debate que caia bem. Era melhor fazer o debate sobre a terra, a saúde. O debate da segurança pública era o debate do opressor. Perdemos um tempo precioso. Que bom que superamos isso. Eu não estou preocupado com o black bloc [grupos que se autodenominam de anarquistas e pregam a desobediência civil. Grupos usam roupas pretas e máscaras para dificultar identificação.], e sim com o blue bloc [polícia militar] que está fazendo uma varredura nas ruas. O desafio é longo”, concluiu.
Marcelo Freixo escuta a fala firme de Daizeca

A opressão vivenciada nas comunidades de baixa renda, na concepção de Daizeca Carvalho, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, é secular. “Continuamos a viver na senzala: os capitães do mato são os soldados da UPP; não existe mais a chibata, mas os fuzis; não existe mais o tronco, mas a tortura. A UPP está entrando nas comunidades para extorquir os traficantes que continuam dentro da comunidade, mas não se intervém naqueles que estão nas áreas nobres. Já ouvi de um policial que UPP significa Unidos do Poder Paralelo. É muito complicado falar de segurança pública quando o maior violador é o próprio Estado.” 

Reaja ou Será Morto - A diferença de tratamento não é novidade na historiografia brasileira. Hamilton Borges, do Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta, afirmou que o racismo é a contradição principal do Estado brasileiro. Na prática provaram isto. E citou que nas manifestações no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, foram presas 15 pessoas, entretanto, os porta-vozes dos movimentos eram invariavelmente pessoas brancas de classe média ou de pele clara. Dos presos, apenas um teve a cabeça raspada – o rapaz negro. Este ato tem um significado fundamental para os africanos, não podemos prescindir do pertencimento racial desvinculado da ideia de civilização. Nós fomos um povo trazido à força para construir um outro território, chamado de Brasil.” 
Hamilton Borges

Ao falar rapidamente da forma como surgiram as primeiras corporações da Polícia Militar, Hamilton citou que a mais antiga “máquina de guerra” da população brasileira foi a baiana, em 1835, cuja atribuição principal, por ordem da Coroa Real, era intervir em um quilombo chefiado pela arqueira Zeferina. Este quilombo ficava na região de Pirajá, um bairro afastado do centro de Salvador. A Polícia Militar – Brigada Militar – foi criada com uma visão específica de quem deveria ser abatido e contido: isto diz respeito ao processo histórico. E, ainda hoje a PM utiliza o modus operandi de matar do período imperial: eles enterravam ou mutilavam o negro para que servisse de exemplo para não se rebelarem. Foi o que fizeram com o jovem Jackson Antônio, assassinado aos 15 anos e enterrado de cabeça para baixo no município de Itacaré, Bahia.

O papel das mulheres negras no processo de resistência era e continua sendo fundamental; assim como das organizações de mulheres e de homens negros que estão nas comunidades até hoje - escola de samba, capoeira, terreiro de candomblé, o samba, o funk. “Por isso posso dizer que sou um povo dentro de um território hostil e, por isso sou morto pelo Estado brasileiro e seu braço armado. É fundamental criarmos redes protetivas em caráter nacional. Porque estamos combatendo um estado democrático de direito de um governo fundado uma perspectiva de esquerda. E, queremos debater o que significa esquerda e quais são suas bandeiras. Para que a esquerda que está aqui com a gente, amanhã não nos dê sopapo. Vivemos um processo histórico de traição política.”

Resolução nº 013 - “Tomando por pauta o extermínio da Juventude Negra o Fórum de Juventude do Rio de Janeiro propôs estar mais nos espaços de discussões e ocupando mais as favelas incidindo em políticas públicas a partir destes espaços”, disse Monique Cruz. Um dos temas para reflexão são as ocupações militares para além das UPP. Existem outras áreas da cidade que ainda continuam convivendo com uma política de enfrentamento de ocupação militar, incluindo as áreas de milícias – sem as operações, mas também uma ocupação.

A militarização das polícias e a militarização dos territórios ocupados pela UPP mostram a face das diversas políticas públicas colocadas nessas regiões. A Resolução nº 013 é uma destas situações, em que a polícia decide que tipo de evento a comunidade vai ter. Em Manguinhos, o comandante da UPP assumiu a intermediação entre os órgãos do Estado e a população para discutir políticas públicas de habitação, remoções. “Hoje continua tendo a mediação armada dos conflitos nos territórios, se antes era com o tráfico, hoje é com a polícia.” 

Para Monique, pensar favela nos nossos espaços é pensar a desconstrução do conceito de pessoas da favela. "Os partidos políticos, a esquerda, principalmente, têm de desconstruir alguns conceitos que trazem culturalmente. O que se precisa é discutir a favela respeitando a cultura local, suas resistências, as organizações já existentes. Considerar os territórios respeitando as suas especificidades e pensar o que queremos construir juntos".

A periferia nunca dormiu - Para Débora Maria da Silva, da Mães de Maio, organização que lançou o livro Mães de Maio, Mães do Cárcere, é muito importante discutir segurança pública, “porque quem ia pra rua eram as mães e familiares para esta discussão. O gigante acordou? A favela nunca dormiu! A periferia nunca dormiu! A periferia nunca dormiu, porque o Estado nunca deixou. Segurança pública é um assunto de todos e desmilitarizar a polícia é o dever de todos.” 

Ela afirma que a desmilitarização lhe pertence. Assim como cada um que tomba é como se fosse um filho seu: “não importa se ele é bom ou bandido, é meu filho”, disse afiançando que a transformação depende de cada um.

Como no título da mesa, Das Senzalas às Favelas: Criminalização da Juventude Negra e Guerra às Drogas, Débora diz que a senzala é a favela. “Os porões dos navios negreiros são os presídios, que só deparamos com negros e negras. Vemos que a especulação imobiliária incendeia as casas de pobre, como ocorre em são Paulo e agora acontece aqui [no Rio de Janeiro].” 

E, fazendo alusão às manifestações, Débora afirma que muita gente foi para as ruas despreparada; “se tivessem preparo, não sairiam das ruas. Só quem sabe mesmo é quem sofre o dia-a-dia. E a pior coisa do mundo é enterrar o filho”, como ocorreu quando esteve no Espírito Santo, em que as mães relataram as mortes de seus filhos e mostravam as fotografias denunciando os corpos queimados: uma infeliz prática de lá.”

A mesma vontade de continuar buscando a transformação que está dentro de cada um é também a perspectiva do repper Fiell, Visão da Favela Entre Silêncios e Resistências. “Lutar pelos direitos humanos é quase suicídio”, disse o co autor, junto com amigos, de uma cartilha sobre abordagem policial lançada no período da implantação da UPP no Morro Santa Marta, , em 2008, primeira do município. A repressão foi forte, com direito a prisões. “Entrou a UPP e toda a pedagogia militarizada – racismo, abuso de poder etc. – dentro de uma comunidade sem respeitar a cultura local.”