quarta-feira, 7 de novembro de 2012

"Vamos viciar as crianças?"

Um convite destes só pode ser para algo do Bem. E é algo do Bem de que trata o artigo da jornalista Ruth de Aquino da Revista Época. Nele, ela mostra que com vontade política sonhos podem se tornar realidade, como a oportunidade de segmentos secularmente excluídos terem outras possibilidades de escolhas, e não aquelas que historicamente determinadas como único caminho.

Vale a pena ler o texto na íntegra, pois serve como pauta de discussões sobre variados temas e aspectos.

Boa leitura...


RUTH DE AQUINO - 06/11/2012 07h00

Vamos viciar as crianças?

RUTH DE AQUINO
RUTH DE AQUINO  é colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br (Foto: ÉPOCA)
"Me filma lendo uma poesia de Drummond!”, diz Luiz, de 11 anos. “Tia, escrevi um livro, escrevi um livro!”, grita Henrique, de 12. “Você vem no nosso evento hip-hop, só de meninas? É o ‘Pronto Falei’. Somos as ‘Ladies’. Vou te mandar o ‘flyer’ por e-mail”, fala Mariana, de 16 anos, olhos verdes de gata, faixa de bolinhas brancas nos cabelos, com o notebook no colo.
Crianças e jovens nas comunidades de Manguinhos e da Rocinha, no Rio de Janeiro, estão viciados. Em livros, computadores, filmes, peças, shows, capoeira, dança, música, horta, culinária. Tudo de graça nas bibliotecas-parque do Rio. Para quem aposta na vida e no conhecimento. É um vício que contamina suas mães e seus pais, entra no sangue e muda a forma de ver, refletir e atuar no mundo. Emociona qualquer um disposto a enxergar o outro lado do muro da vergonha, do crack, da violência e dos fuzis.
As bibliotecas-parque no Rio são espaços coloridos de sonho e tecnologia, com acervos de dar inveja a faculdades e livrarias tradicionais. Acervos comprados pelo Estado e não doados. A da Rocinha foi inaugurada em junho passado, numa antiga clínica clandestina de aborto. Recebe 370 pessoas em média por dia. Tem 10 mil livros e 555 DVDs. Até agora, emitiu 1.879 carteirinhas, recebeu 3.754 consultas e emprestou 4.912 livros e filmes.
A de Manguinhos, a primeira do Brasil, abriu as portas em abril de 2010. Antes, era um galpão desativado de suprimentos do Exército, junto a uma praça ocupada por traficantes. Ganhou um prêmio na Bienal do Livro de 2011. Em dois anos e meio, recebeu quase 160 mil pessoas. Conta 105 mil consultas, 36.338 empréstimos e 5.230 carteirinhas. Tem um acervo de 26 mil livros e 1.205 DVDs.

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Os números impressionam quem acha “biblioteca” uma coisa elitista, ainda mais em comunidades carentes de tudo, até de esgoto. O mais surpreendente é o conceito desses laboratórios culturais vivos, a sofisticação dos equipamentos e as instalações de Primeiro Mundo.
O vício em livros, filmes, computadores emociona qualquer um que só vê nas favelas crack, violência e fuzis
Em Manguinhos, bem ao lado da “Faixa de Gaza” de onde foram removidos há duas semanas dependentes de crack, vi um menino chegar só de bermuda, parar na porta e vestir a camisa para entrar sem ser advertido. Eles respeitam as regras. E se sentem respeitados, valorizados. Na Rocinha, onde uma instalação de pastilhas giratórias na parede conta, de maneira lúdica, a história da comunidade, uma das placas brancas faz a pergunta: “Qual a pessoa mais importante que já visitou nossa biblioteca-parque?” Viramos a placa e a resposta é...um espelho.
Nos jornais e na televisão, o que dá ibope são as prostitutas infantis da Rocinha, as refinarias de droga em Manguinhos e no Jacarezinho. Não interessa saber que a equipe da superintendente de Leitura e Conhecimento do Estado do Rio, Vera Saboya, é convidada a contar nossa experiência aos bibliotecários de Washington, Paris e Bogotá. Ninguém divulga que a Royal Shakespeare Company, da Inglaterra, envia representantes ao Rio para laboratórios de arte cênica com alunos e professores nas bibliotecas-parque.
“A gente não faz educação formal, não somos escolas”, diz Vera. “Mas estamos desenvolvendo novas formas de educar crianças, jovens e adultos através da arte e da inclusão digital. Sem preconceito com o leitor, com sua classe social, se estuda ou não, se é operário, se chegou ou não à universidade. Ele encontra aqui de tudo – de livros sobre a Grécia Antiga até o best-seller mais vendido. Qualquer um deveria ter acesso a todo tipo de conhecimento, do popular ao erudito.”
A secretária de Cultura do Estado, Adriana Rattes, diz que foi proposital chamar os centros culturais de bibliotecas. “Num país onde se lê tão pouco, não há nada mais revolucionário e inovador do que investir em algo assim. Chamamos de Biblioteca, com letra maiúscula.” E é um “parque”, para mostrar que a aventura do conhecimento pode se dar num espaço propício ao encontro, à troca, ao prazer e ao lazer.
“O que dá gosto aqui”, diz Adriana, “é ver namorados, ou pais com filhos, ou crianças com avós frequentando a Biblioteca aos sábados e domingos, com seus saraus de poesia, cineclube, desfiles de moda e grupos de teatro.” A próxima biblioteca-parque será no alto do teleférico do Complexo do Alemão.
Como jornalistas, aprendemos a máxima de séculos atrás: “Notícia é tudo aquilo que alguém não quer ver publicado; o resto é propaganda”. Somos treinados para a investigação do malfeito, para a denúncia da contravenção. Numa semana como esta, de onda de violência em São Paulo, é um privilégio “denunciar” o bem. Ganhei o dia como testemunha ocular desse outro lado do muro, pouco atraente à mídia. Vamos viciar nossas crianças num mundo melhor porque elas merecem.  

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